VOCÊ CONHECE: ANELITO DE OLIVEIRA ?


Anelito de Oliveira nasceu em 1970, em Bocaiúva, norte de Minas Gerais. Poeta, ficcionista, ensaísta, crítico, editor, jornalista, professor e pesquisador. Pós-doutor em Teoria da Literatura pela Unicamp e Doutor em Literatura Brasileira pela Usp, é pesquisador na Unicamp e professor licenciado na Unimontes. Publicou cinco livros de poemas: "Lama" (2000), "Três festas: a love song as Monk" ( 2004), "Transtorno" (2012), "A ocorrência" (2012), "Mais que o fogo" ( 2012) e o ensaio "A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila" (2013).



A LIXEIRA


      "Apoiado na lixeira. Agora, disposto a escrever sobre isso, defino. Naquele momento, tive dificuldade para chegar ao nome daquela coisa. Aderir ao nome novamente. Fiquei bastante tempo pensando como se chamava aquilo. Apenas o nome não era suficiente, mas acabou por se tornar suficiente. Uma rasa referência. Não conseguia me lembrar. Precisava me lembrar. Estava desmemoriado? Sim, era uma lixeira. Independente de como era. Finalmente encontrava o nome. Apoiado num nome, eu estava ali. 

               Apoiado, agora, na lixeira. Uma grande lixeira na esquina da rua. Na esquina amenizada pela curva da calçada, uma longa curva formando quase um calçadão. A lixeira, sem dúvida, tinha a ver com isso. Com uma localização. Era uma lixeira num quase calçadão. Não era mais uma lixeira. Nem a calçada mais uma. E eu estava ali. Na calçada com a lixeira. Em meio, uma forma de resistência. A lixeira estava vazia. 

                Não me lembrava de ter visto aquilo cheio algum dia. Precisava estar cheia naquela hora. Cheia de lixo. Fedendo. Fedendo contra o crepúsculo seria uma realidade em si. Vazia, estava vazia. Parecia grande. Parecia grande demais. Parecia de uma grandeza além do possível. Estava vazia, tão grande e vazia. E era imprevisível assim. 

                Não conseguia pensar como seria aquela lixeira cheia. Tampouco conseguia perceber o quê seria. Cheia de lixo? Lixeira com lixo? Eu, apoiado sobre ela, não conseguia percebê-la como lixeira. Não tinha parâmetro. Era eu apoiado sobre algo à minha frente na calçada. Era eu apoiado sobre algo que parecia ter estado à minha espera. Era eu apoiado sobre algo dentro da noite se abrindo.

             A tarde havia passado pela lixeira. A lixeira havia sobrevivido à tarde. Eu não estava ali. De repente, chegava ali. Eu ali. Eu ali. Eu ali. Poderia estar em outro lugar Tinha estado até então em outros lugares. Tantos lugares. E tantas calçadas, tantas lixeiras. Grandes, pequenas, quadradas, redondas, retangulares. Mas agora, eu ali.

             Tive dificuldade de me reconhecer naquela cena. Tive dificuldade de chegar à ideia de eu mesmo ali. Por muito tempo naquele instante, era outro ali. Alguém exausto. Alguém com o mundo nas costas. Alguém sem saber aonde ir. 

               Agora, somente agora, vejo-me eu, que era eu ali, apoiado na lixeira, olhando a noite sem saber por quê. Nada pensando sobre a noite. Talvez querendo pensar. Sempre se quer pensar. Pensar para se encontrar. Mas era algo sobre algo ali. Com uma inútil vontade de pensar, sem dúvida. Sem dúvida, com uma descrença na capacidade de pensar. Estado de bicho. O eu.

                Rememoro. Desço ao porão da memória. A isso que me parece agora, só agora, o porão da memória. O confuso, o desarrumado das coisas. Talvez alguma saudade se enunciasse ali. Como compreendê-la agora?

                A rua à frente, ao lado, carros, pessoas, janelas abertas nos apartamentos. Um prédio amarelo, outro verde, outro azul. A construção. A agressão. O agressivo. Gente falando de sexo. O reflexo de uma tela de aparelho de televisão ligado no 3º andar. O mundo, enfim. E, diante disso, diante desse mundo, diante desse mundo como é, um sujeito apoiado sobre uma insignificante lixeira sem lixo. 

                 Confundia-se com o lixo. Participava da mesma natureza do lixo. De alguma forma, era lixo também. Tratava-se de lixo ali a se denunciar. Aquilo de que nada se espera. Lixo à espera da caçamba para apanhá-lo. Estava ali, encontrado. Ou, estavam ali, encontrados. O lixo e a lixeira. A bosta. O inútil. A besteira. Harmonizados, íntimos - na indiferença do lixo, lixo pela indiferenciação. Sentido de lixo. 
                   
                 Por um instante, pensei no lugar do sublime nessa sensação familiar de grotesco. Por um instante, eu estava imerso numa reflexão sobre o sublime. Não era uma sensação estranha. Chegar àquilo por ter esquecido o mundo das coisas. Não era uma sensação estranha. Era um sentimento.

                Para além das coisas, depois do esquecimento até do nome que as coisas têm no mundo. Eu estava ali. Comum. No mundo. Comum no mundo sem coisas. Apoiado na lixeira. Sem forças para chegar à consciência do que fui. Disperso no que ainda sou. Era eu. Agora sei. Agora que me ponho a escrever.

                Apoiado na lixeira quando a tarde se decompunha. Era eu. Agora sei. Agora que volto a pensar. Abandonado a uma serena ausência de sentido, era eu ali. Apoiado na lixeira sem lixo, resistindo a voltar atrás ou seguir em frente. Abismado."




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