VOCÊ CONHECE: BERNARDO PELLEGRINI? [3/4]

ENTREVISTA PARA A REVISTA COYOTE [PARTE II]


1. Quais as diferenças entre seu primeiro trabalho, Humano Demais, e o último, o CD Quero seu Endereço?

"Quando gravei o Humano Demais eu tinha um projeto estético em progresso. Na minha primeira temporada em São Paulo, em 78, numa nascente Vila Madalena, convivi com as traduções e a poesia dos concretos , através de um amigo poeta chamado Pedro Tavares de Lima, que me levava na casa do Augusto de Campos. Lá vi o Haroldo de Campos ler poesia e aquilo foi uma bomba dentro de mim: a leitura dos poetas russos, principalmente. A gente só tocava praticamente nossas próprias músicas e as músicas do pessoal de Londrina. Minha paixão sempre foi o Itamar Assumpção, a gente mostrava as músicas que estava fazendo um para o outro, logo que ele se foi para Sampa e vinha para Londrina rever os amigos e visitar a família em Arapongas. No meu primeiro trabalho, Mina D'água, de 76, fui o primeiro a cantar uma música dele num show. Em São Paulo, cada um foi para o seu lado. Fui trabalhar na Folha de São Paulo, perdemos o contato. Ainda o vi num show da Vila Madalena, o primeiro dele em Sampa. Meu desafio criativo era trazer esse universo de certa forma erudito para a canção de rádio, organizar a fala e o som de tantas novas palavras e sentidos. No Humano Demais você vai ver em "Lírio Branco" uma clássica transcriação de um poema de Laurie Anderson que verti e transformei numa valsa brasileira. Já da experiência de música atonal e serial veio "Borboleta". No caminho fui desenvolvendo uma música mais falada, tentando achar minha própria dicção, um jeito pessoal de tratar de emoções. Mudou o Natal, mudei eu e mudaram as sensorialidades desde minha adolescência, quando comecei a compor, olhando meu irmão Clério e meu primo Domingos compondo canções para os festivais universitários de 1968, 1969. Sempre me senti comprometido em traduzir esses sentimentos que nunca entendi muito bem em mim, o desconforto com a vida certinha, essa coisa de cão sem dono que fomos construindo enquanto ganhava o dinheiro do aluguel e ia criando os filhotes. Minha música mais pedida ainda hoje é "Se Eu Chorar Eu Morro", que fiz bem jovem e é expressão de um tempo em que só as mulheres podiam chorar. Tratamos sempre da libertação das mulheres mas falamos pouco do bem que isso nos fez. Hoje penso que o que fizemos, desde o começo até o último disco, foi mixar diferenças, harmonizar opostos, buscar esse caminho, mais do que o novo: o original. Fico feliz vendo que, à distância, é um projeto coerente com nossa própria pequena e explosiva cultura de Londrina e seus desafios: conciliar, no mesmo espaço urbano, povos de 45 culturas diferentes. Crescemos ouvindo rádio. A primeira repetidora de TV do interior do País foi aqui. Ouvimos os sertanejos, que sempre foram fortes, porque no norte do Paraná existe uma cidade a cada 20 quilômetros, eles tinham muito trabalho e muita emissoras de rádio. Ouvíamos a música dos japoneses, dos alemães, das bandas, das orquestras. Depois muito rock. Seguimos o som do Paulinho Barnabé, do Arrigo Barnabé, do Robinson Borba, da Neuza Pinheiro. E o Itamar e o Leminski, sempre. Acho que ainda hoje não perdi o senso daquilo que dizia o Ezra Pound sobre poesia, que eu acho que é canção: pensamento dançando em palavras, palavras dançando nos sons. Acredito, como o poeta americano Michael McClure, que a arte guarda o momento do ato criador, que pode ser sempre acionado, em qualquer época, atravessando os séculos. Acho que um dia ainda vamos navegar por esses mapas sensoriais através das canções, acionando complexos sistemas culturais a cada releitura de uma obra. Daqui para frente, cada vez mais, o seu verdadeiro parceiro é o seu ouvinte."

2. Você tem uma longa carreira jornalística. Sempre foi apaixonado pelo jornalismo?

"Sim, mas pelo que eu chamo de jornalismo-paixão, o repórter indo lá e vivendo e contando, a coisa do new journalism americano. Esses caras, como o Roberto Freire, Mylton Severiano, Narciso Kalili, Sérgio de Souza, colocaram uma cultura do texto nas redações, revolucionaram a imprensa brasileira. Fizeram Bondinho, Ex, Extra, Realidade... Uma coisa muito forte na revista Realidade era a coisa da aventura, de levar o leitor na aventura, seja na Amazônia ou acompanhando a turnê do Roberto Carlos, o jornalista tinha essa voz pessoal, coisa que não existe mais. Hoje padronizou, parece que é sempre o mesmo cara que está escrevendo."

3. Comparando as duas épocas, como você vê o jornalismo praticado hoje?

"Hoje é o jornalismo industrial, um jornalismo de consumo. O jornalismo industrial venceu. A universidade virou um instrumento de reserva de mercado. O historiador Eric Hobsbawm diz que o neoliberalismo desregulamentou o trabalho e regulamentou o ensino como cadeia de corrente ideológica. Quem vai hoje para as redações? Os filhos da classe média. Eles não brigam mais com os pais deles, que é quem paga as faculdades. A dinâmica deles é a de conseguir emprego, de pensar a profissão como carreira. Não vejo problema algum com isso, o que eu critico é que isso passou a ser hegemônico. Só tem isso! Você não tem mais a diversidade humana que havia nas redações. Hoje é um jornalismo papai-e-mamãe (papai é Guia Quatro Rodas, mamãe é Casa&Jardim) com publicações que infantilizam o consumidor, como o Leminski dizia da publicidade. A indústria do jornalismo avançou muito no sentido da apresentação, da rapidez, é uma boa indústria. Só que ela não tem mais uma visão de Brasil, ela tem uma visão funcional, neoliberal, de fazer a instituição republicana funcionar."

4. Se sua obra musical tem várias vertentes, você trafega em vários gêneros. Tem desde mais coisa mais sofisticada como "Whity Lily/Lírio Branco", adaptado de uma letra da Laurie Anderson, ou "Petrogrado", um poema belíssimo do Paulo Leminski que você musicou, mas tem também umas coisas de apelo mais popular como "Homem é Bom", "Carro-forte". Fale um pouco dessa facilidade em compor, de seu processo criativo.

"Eu tenho um prazer profundo em fazer música, e ando cada vez menos preocupado com as consequências disso, porque as consequências de se viver de música sempre foram horríveis [risos], isso de tentar viver profissionalmente de música como a gente vivia de jornalismo. Minha formação em teatro ajudou muito a visualizar a música. A referência é o rádio. Qual o diferencial do compositor de Londrina? Todo compositor do Nordeste aprendeu música na rua, porque é muito forte o tambor. A gente, não. A gente ficava ouvindo o rádio, aqui só dava isso. Então, através do rádio, o compositor começa a mixar as informações, que é da natureza da colonização de Londrina. Como falei, são muitas nacionalidades compondo a cidade, fora brasileiros de todos os lugares. Veio de tudo para cá, japoneses, nordestinos, veio nazista, anarquista libertário, tudo. E aqui cada um teve que se comunicar, realizar outras mixagens. Por exemplo, a música do Arrigo, um cara que tem uma obra maravilhosa, é expressão disso. E o que é a música do Arrigo? É outra locução do rádio, do cinema. Clara Crocodilo é uma mistura de rádio, cinema, quadrinhos. O Charles Baudelaire não falava que as cidades são expressão do corpo? E a arte é o navegador, o GPS das emoções. A loucura do ser humano é a comunicação."

5. O que move você a compor uma canção?

"Quando canto uma música fico muito emocionado. Quando começo a fazer uma música quero chegar no ponto em que ela esteja pronta, para cantá-la e sentir essa emoção outra vez. Se ao seu lado estiver uma pessoa pela qual você está apaixonado querendo ouvi-la, ou seus amigos que adoram seu trabalho, melhor ainda, você cria uma comunidade, que é a utopia particular que eu sempre tive. Estar vivo, para mim, é estar criando, o que não é necessariamente estar feliz, estar alegre... Acho a coisa mais nojenta um poeta falar, "ah, a gente falou de poesia o dia todo, vamos falar de outra coisa"... Poesia é uma necessidade mesmo, então a necessidade vira ofício e você quer melhorar, convencer mais pessoas. Quando estou estudando um compositor, eu quero ver como é que ele faz aquelas harmonias. Então fico assoviando, fico marcando o tempo, tentando ver as divisões. Você começa a pensar musicalmente, você está na rua, começa a cantarolar alguma coisa e as palavras começam a vir, começam a preencher aquilo. Por exemplo, a canção "Mares do Mares". Eu estava em Ilhabela fazendo o Almanaque do Amor, fazia um ano que eu não escrevia um poema nem escrevia uma música, aí saiu este poema. O Paulinho Barnabé deixou em casa um módulo de guitarra do Robert Fripp, do King Crimson, umas coisas de música serial, e botei uma coisa assim em cima desse poema. Às vezes você está trabalhando e vê a ideia de uma linha melódica. Outras vezes, não. Essa coisa do zen, que o Leminski traduziu para gente, da ideia do poema como satori , daquela coisa que faz você cair para trás, é um processo muito corporal."

6. O que acha da atual sociedade do espetáculo, do culto às celebridades, da fama instantânea?

"Esta é a era do anonimato. A celebrização é só uma tentativa desesperada de sair do anonimato, ao qual estamos condenados. A verdade é a seguinte: quando você desapropria o saber de outra pessoa, você está dizendo que ela não sabe nada sobre a vida.Você está botando um número nela e dizendo: quem sabe de sua vida sou eu, de sua saúde, seu futuro, etc. O problema é viver sem propriedade, sem controle, sem acumulação. A gente não consegue. A sociedade é adequada para que a gente é, sensorialmente. Não há nada mais cruel que o mercado de trabalho. Você pode escapar do controle familiar, escolar, militar, mas não escapa do controle do mercado, pois tem que casar, ter filho, mandar para escola e entrar na cadeia produtiva. Não escapa. Quando escapa disso você é um desgraçado. A gente vive esse processo. Por isso a ideia do Bando do Cão Sem Dono. É uma ideia de independência. Tem alguma coisa errada? Não. Teve momentos em que a gente ganhou e outras, perdeu."

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